Em 2003, MCK, então com 22 anos, conferiu ao movimento rap em Angola extraordinária notabilidade política e social, em parte devido a uma intervenção assassina da guarda pretoriana do presidente José Eduardo dos Santos.A Bala Doi
A 26 de Novembro do mesmo ano, soldados da guarda presidencial amarraram e arrastaram o lavador de carros Arsénio Sebastião “Cherokee”, 27 anos, para a água, no embarcadouro do Mussulo, em Luanda. Afogaram-no, ignorando os pedidos de clemência da multidão que circulava pelo local.
Que crime Cherokee teria cometido para merecer execução pública e sumária.
Os efectivos da Unidade de Guarda Presidencial (UGP) surpreenderam Cherokee a cantarolar “A Téknika, as Kausas e as Konsekuências” de MCK, também conhecida como o “Sei Lá o Quê, Uáué”, uma crítica acintosa ao governo de Dos Santos. Mataram-no imediatamente para que servisse de lição a todos.
O álbum de MCK era uma produção improvisada, clandestina (underground), distribuída por vendedores ambulantes. Os candongueiros, que fazem circular o povo por esta cidade de engarrafamentos intermináveis, amplificavam a curiosidade sobre o álbum pela regularidade com que tocavam a música para que os passageiros ganhassem consciência social através da música. É também nesta cidade de Luanda, onde a maioria não tem emprego formal e dedica tempo bastante para lamentar as suas malambas, que MCK tomou a dianteira em atacar os inqualificáveis abusos de poder como causas do mal-estar da sociedade. O artista rimava também contra o espírito de corrupção dos próprios cidadãos que preferiam adular os mesmos líderes políticos que os têm sujeitado à opressão, à miséria e à falta de educação, em troca do sonho de uma vida fácil. Este continua a ser o pesadelo da sociedade angolana.
Passados oito anos, “Proibido Ouvir Isto” é a nova proposta discográfica de MCK, com 15 faixas. Um trabalho mais estilizado e amadurecido, com líricas mais polidas e o mesmo espírito de revolta social. Diplomado nos meandros da sobrevivência social, MCK narra, através da batida, três elementos fundamentais da realidade actual: aA corrosão dos valores morais na busca obsessiva de dinheiro; o abuso de poder e de confiança e a falta de visão comum sobre o destino do país.
Em dueto com Paulo Flores, MCK interpreta uma nova versão de “Nzala” (fome), de Elias dya Kimuezo, que combina acústica, violino e a fala rapper, numa ode à criança com fome. É uma mensagem de amor, um apelo à solidariedade para com as crianças desta imensa Angola que precisam tanto de um pão como de uma mão cheia de afecto.
Numa outra faixa, com Bruno M, MCK revisita o drama da juventude dos musseques para quem o crime parece ser das poucas opções de realização na vida. É uma viagem pelas transformações ideológicas e da economia política angolana, pelos sistemas prisional e de justiça que discriminam e desumanizam os excluídos da sociedade. MCK denuncia também a manipulação da realidade angolana: “Biografias apagadas/ Jornalistas comprados/ E ai daqueles que se atreverem a enfrentar o mercenarismo político/ Mas ai de mim se não viver como um verdadeiro crítico deste cenário político/(…) Sacrifica-se a maioria pelos caprichos de uma minoria (…)”.
Na faixa “O País do Pai Banana” MCK ataca quem se empoleira “eternamente” no poder e já sem discernimento para gerir a realidade: “Também quero a paz no prato, dignidade e paz no prato./ Prefiro morrer a tiro do que morrer a fome, irmãos./ A disparidade é enorme, vivemos presos nesta armadilha, condenados a sermos escravos de três famílias./ Tudo é deles, do Talatona à Ilha, os diamantes são deles, o petróleo é deles, a imobilária é deles/ (…) para nós só temos o Zango e o Panguila./ O patrão é o colono, na terra do pai banana”.
MCK compõe, assim, o seu ritmo contra o novo-riquismo emergente dos actos de rapina e pilhagem dos recursos do Estado, que definem o modo de governação e o estilo de vida das famílias reinantes. Insurge-se contra a mentalidade neo-colonial e de claro desprezo para com o sofrimento do povo que anima a acção e o obsessivo apego ao poder por parte destas famílias. Este, afinal, será o legado de três décadas de reinado, trágico, do nosso “Pai Banana”. O músico profere a sua sentença: “Só temos uma opção/ Ou acabamos com a corrupção/ Ou a corrupção acaba connosco/ No país do Pai Banana.”
Numa infusão de reggae, o Ikonoklasta (também conhecido por Brigadeiro Mata Frakuz, ou simplesmente Luaty Beirão) e o MCK produzem, na opinião do autor, a melhor faixa do álbum, e a mais corrosiva das líricas (“A Bala Dói”). Luaty Beirão tem sido um dos principais impulsionadores dos protestos de rua contra o regime de José Eduardo dos Santos e uma das principais vítimas da sua brutalidade. É também a manifesta consciência de um jovem da classe dominante que troca o conforto do sistema para se juntar aos seus companheiros mais desfavorecidos. Fá-lo em irmandade e comunhão de ideais por uma Angola melhor e mais justa. O pai de Luaty, João Beirão, foi um dos mais próximos colaboradores do Presidente nos anos 90 e seguintes, na qualidade de director-geral da então poderosa Fundação Eduardo dos Santos (FESA).
“Sempre nos prometem comida/ Mas só nos dão porrada/ Nosso estômago até já grita/ Mas eles têm babas que cospem balas e a bala dói/ A bala bói, a bala dói [refrão] (…) /Palavras estão ‘bora minadas/ Esperança ficou mortelada [mutilada]”. Os jovens, com bom senso de humor, enquadram e desmontam o famoso discurso do Presidente em que não assume qualquer responsabilidade pela crescente pobreza em Angola porque, dizia José Eduardo dos Santos: “Quando nasci, já havia pobreza.” MCK lembra, assim, porquê esses “Tigres de papel sentem medo do Luaty”.
Em “Vida no Avesso”, MCK relata os paradoxos da política angolana e o desespero de muitos que acreditam apenas em uma intervenção divina para que o falso santo e a sua seita de malfeitores sejam “excomungados” da consciência nacional e devolvam a liberdade ao povo. “A chuva tem estatuto e mais garra que a oposição/ Desmascara as burlas das obras de um milhão (…)/ Jesus Cristo volta já/ Teu povo está a chorar (…)/
Com este disco, MCK retoma o seu lugar cimeiro como um dos artistas da mudança de mentalidade e da formação de uma nova consciência social em Angola.
O País do Pai Banana