Como surgiu a tua relação com a música?
Acho que tudo começou muito cedo, conta a minha mãe que sempre gostei de tocar em instrumentos, guitarra, pianos eléctricos, etc etc etc, mas em termos de compor e tocar mesmo de um modo mais sério foi em 1996 que em Cuba aprendi a dar uns toques de guitarra com um tio.
Como surgiu a sua paixão pelo hip-hop?
Lembro-me por volta de 1993-1994 em Luanda ouve um boom do "eu queria um Ferrari amarelo" do Gabriel o Pensador e a partir dai que fui me sentindo intrigado com essa forma de "falar por cima das melodias". Já havia algum contacto prévio mas mais mesclado no explosão internacional com o "I've got the power" e outras coisas do género mas só prestei mais atenção quando ouvi em português.
Quais foram as suas primeiras grandes influências no hip-hop mundial?
Basicamente não havia muito por onde escolher, naquela altura a praça do Kinaxixi e alguns amigos tinham algumas coisas engraçadas como Snoop, Tupac, Fu-Shnikens e pouco mais do género. Acho que so em 1996 prai é que tive contacto com discos de rap americano, o Luaty (Ikonoklasta) tinha um stock grande e gravava-me algumas cassetes.
E no hip-hop lusófono?
Gabriel o Pensador e SSP acho que foram o primeiro "choque com o rap em português". Depois ouvi Black Company e fui ouvindo pouco a pouco o que se fazia no universo do rap angolano. Não acompanhei muito o desenvolvimento nessa altura do rap angolano porque estava focado noutras coisas mas arrependo-me profundamente.
O Hip Hop
Descreve-nos o teu trajecto dento do mundo do hip-hop angolano?
Bem, depois de vir para Lisboa viver e ja estar mais dentro do movimento e dos "canones" da cultura, acabei por re-encontrar o Luaty (que tinha sido meu colega de escola) e ele me apresentou uma nova face do rap angolano, Mc Kapa, Filhos da Ala Este, Hemoglobina, etc etc etc... Acabei por entrar em contacto com alguns deles e pouco a pouco fui produzindo para alguns destes artistas, eu tinha pouco mais de 1 ano de produção quando fiz metade do disco do Mc Kapa (Trincheira de Ideias) e bem... dai para a frente fui sempre dando o meu contributo quando me fosse pedido, Kid MC, Mc Kapa, Leonardo Wawuti, Keita Mayanda, Phay Grande, Ikonoklasta, etc etc etc
Quando e como surgiu o Conductor como productor e não só MC?
Eu comecei a produzir em 2000-2001, um grande amigo, o Loxe, mostrou-me o Fruity Loops e fui mexendo mais e mais na altura já tocava um pouco de guitarra e fui só misturando o que bem me apetecia com o "como deve soar". Lembro-me de samplar uns desenhos animados manga e me sentir o Madlib português... Hahahhahahaha.. o tempo passa não haja dúvida disso...
Como Mc comecei em 1998, assim que cheguei a Portugal conheci alguns rappers do circuito tuga e comecei a fazer algumas coisas com eles, freestyle, algumas rimas escritas, etc etc.. mais tarde fiz parte de um grupo chamado Nova Trova com uns amigos mas acabamos por nos separar.. A dada altura comecei a prestar mais e mais atenção ao rap que se fazia em Angola, acho que sempre senti mais "espaço para crescer", havia menos "barreiras psicológicas" e o pessoal sempre foi mais dado a experimentação sem usar bases de referencia.
Pensas ser melhor a cantar ou a produzir?
A produzir sem sombra de dúvidas, não acho que seja um mc exímio nem nada do género, acho que me preocupo demais com o quanto a mensagem que quero transmitir vai ser recebida.. e isso acaba por me dificultar o processo de espontaneidade que faz falta para embelezar o flow. No entanto, tenho alguma facilidade a fazer freestyle e acho que talvez ai me sinta um bocado melhor..
Como avalias a tua evolução como productor?
Eu acho que devem ser os ouvintes a decidir isso...
A meu ver, compor ou mesmo produzir é um processo que passa por fazes, no principio queres soar como alguma coisa, depois começas a criar a tua "imagem de marca" e só mais tarde é que percebes o porque não és "ouvido" como querias. Acho que a limitação é só parte da mente, tudo é possível e fazível e acho que nunca me deixei gerir pelas regras que limitam os géneros, hoje em dia estou muito mais concentrado na qualidade de som, mistura e gráficos do que a uns anos atrás mas ao mesmo tempo acho que é mais simples ser ouvido quando soas bem...
Quais são as producções tuas no hip-hop de que mais te orgulhas?
Eu vou te Queixar - Conjunto Ngonguenha
Eu Vou Te Queixar
After Hours - Tekilla
Faz parte do Hustle - Força Suprema
E o rapper com que mais gostas de trabalhar, seja por motivos criativos ou outros quaisqueres?
Há vários tipos de artistas...
o Ikonoklasta tem sempre aquele desafio e aquela ideia complicada que vai demorar a criar mas cujo resultado final vai ser extraordinário. O NGA é sempre aquele mc que me surpreende sempre, é eficiente, tem uma escrita muito fluída e de rápido impacto e tem um tempo de entrega surpreendente.. 15 minutos por som, dobras, adlibs, coro.. é incrível.
Como avalias a qualidade productora do hip-hop lusófono em geral?
Acho que há produtores muito bons e acho honestamente que é o pilar que mais tem desenvolvido nos últimos anos, os beats soam cada vez mais a beats e a mistura vem evoluindo a longos passos. Kilú, Bambino, Sandokan, Aires, Eliei, Sam The Kid, Nave, Marechal têm sem dúvida nível para representar a lusofonia num evento de produção mundial.
Que planos e/ou projectos tens para o futuro como productor?
Projectos ha sempre milhares e milhões.. de momento estou a finalizar um projecto com os Força Suprema, vai se chamar "Faz Parte do Hustle", outra brincadeira com Edu-ZP que é um dos melhores rappers angolanos a meu ver e também um disco com Supremo G que vai se chamar "Regresso ao Futuro"... estes são os que tem andado, porque na gaveta há sempre mais uns tantos..
Conjunto Ngonguenha
Como surgiu a ideia do Conjunto?
A ideia do Conjunto apareceu em 2002 entre conversas de internet e ideias idiotas e estúpidas que todos tínhamos em comum. Chamar de Conjunto foi apenas uma forma de não sermos outra crew e ao mesmo tempo de darmos aquele props a geração passada.
Como definiarias o seu propósito e a sua fonte de inspiração?
Acho que de uma forma muito natural nós somos bastante idiotas, passamos a vida a rir e a reparar e reclamar ironicamente da vida que vivemos e das coisas que acontecem a nossa volta. Somos uns realistas estupidamente rappers. Basta passar umas horas connosco para perceber de onde aparecem os temas e de que forma as coisas são escritas, acho que há mais demora na parte da produção, corte-e-costura e montagem do que na hora de encontrar uma fonte de inspiração.
Qual foi a reacção do público ao vosso primeiro CD? Estavas à espera desta reacção?
O público teve uma reacção muito lenta, os meios de promoção na altura eram quase inexistentes e lembro-me de termos vendido 200 copias no dia do lançamento oficial do disco em Luanda. Mesmo em Portugal as coisas não foram muito diferentes, o disco só esgotou efectivamente uns 2 anos depois do seu lançamento e foi quase só ai que nos apercebemos da reacção das pessoas a música, acho que foi um produto difícil de digerir.
A nossa grande admiração foram artistas de meios bastante fora do nosso terem escolhido o disco como disco predilecto do ano e sermos bem recebidos por grupos como os Cool Hipnoise, Prince Wadada, Terrakota, Sara Tavares ou mesmo 1-Uik Project, que dizem ser uma grande inspiração para o trabalho que fazem.
O vosso som ‘É Dreda Ser Angolano’ inspirou um documentário do mesmo nome bastante bem recebido. Será que o seu sucesso surpreendeu-te, ou perspectivavas algo assim?
O projecto foi filmado por nós e acabou por ser editado e lançado pela Fazuma, editora independente do mercado português. Acho que era de esperar uma boa recepção, as filmagens foram feitas de forma a captar o quotidiano angolano e para muitas pessoas ainda é um mito perceber como o pais sobrevive e como muitas pessoas vivem e como os prédios escondem, pisam e soterram os musseques e o modo de vida de muitos cidadãos angolanos. Claro que receber prémios etc etc nunca nos passou pela cabeça, mas é como dizemos, a realidade de uns é o teatro da vida de outros..
Definirias o Conjunto Ngonguenha como um trabalho discógrafico com conotações sócio-políticas?
De certo modo sim mas não me parece que façamos um trabalho direccionado para esse campo. Nós apenas falamos do nosso dia a dia, dos nossos problemas, das nossas cicatrizes de infância etc etc, acabamos por ser críticos e satíricos porque é assim que somos naturalmente, o angolano de forma natural é um "aceitador" e nós somos um pouco mais críticos mas é tudo feito sem esse link directo..
Que planos tens para o futuro do Conjunto? Pensam fazer mais documentários?
Já pensamos, mas como tudo o que acontece com o Conjunto, o tempo e a forma de fazer as coisas é muito nossa... O Conjunto vai começar a se concentrar em fazer um evento em Luanda no fim do ano e em espalhar mais e mais a semente que atiramos na Ngonguenhação.. Ainda temos 2 temas por fazer por isso ainda poderão esperar alguma coisa a passar ai pelo ar..
Buraka Som Sistema
O mundo é do kuduro dentro de Angola, para nós da Buraka é o mundo da música electrónica (ou música urbana como chamamos), estamos no mesmo palco que os Daft Punk, Major Lazer, Crookers, MIA, Sinden, Benga.. é apenas diferente, é um mundo de espectáculo altamente direccionado a música de impacto e de dança. Desde o momento que tens mc's com microfones a fazer o público se mexer e vibrar seja que tipo de som seja para mim há uma ligação directa com o hip-hop, afinal a base é a mesma.
Acho que o kuduro hoje em dia representa melhor o quotidiano angolano do que o hip-hop que temos feito. Há mais originalidade e criatividade pelo menos sem sombra de dúvidas e é claro que é a maior expressão cultural que o país tem a décadas.
Como surgiu a idea para o Buraka Som Sistema?
A ideia surgiu no sentido de apresentar as noites Lisboetas a batida que se ouve nos clubes africanos, tudo começou com festas onde Dj Riot e J-Wow faziam de dj e o Kalaf e eu fazíamos de mc's a criar um hippe a volta do som em si. Depois de alguns eventos esgotadíssimos e a pedido do público acabamos por nos concentrar em fazer músicas para ilustrar o que estava a acontecer. E dai foram aparecendo pouco a pouco o Yah, Wawaba, Sound of Kuduro e o Kalemba (Wegue)...
Como defines o som dos Buraka?
Buraka Som Sistema faz música urbana, eu não consigo ver as coisas de outra forma, não vejo muita diferença entre o que nós fazemos (em termos conceptuais) e o que acontece no Baile Funk, o Kwaito, o Sakousse, Reggaetón, Nueva Cúmbia, Baltimore, Grime, Dubstep, Drum'n'Bass, Funky-House... são todos géneros suburbanos começados por miúdos em frente a um computador a tentar misturar o som que ouvem todos os dias com o som que não lhes sai da cabeça...
Qual a avaliação que fazes acerca do sucesso que o Buraka tem estado a granjear pelo mundo?
Há muito trabalho duro por traz do nome Buraka Som Sistema, há muitas noites sem dormir e muitos sacrifícios por parte de todos, há equipas e mais equipas a trabalhar e a bater com a cabeça na parede para fazer com que o plano funcione. Para além disso há a força de vontade dos músicos e da própria banda para que as coisas aconteçam sempre da melhor forma possível, a organização e pensar grande são sempre a base de tudo, é só o que tenho a dizer.
Espanta-te a forma como o kuduro está sendo tão bem aceite mundialmente pelas mais diversas pessoas?
Acho que África é o centro de atenções do que está a acontecer musicalmente dentro da música electrónica a uns 2, 3 anos. Nós simplesmente viemos trazer uma outra face dentro de tudo o que as pessoas tem vindo a ouvir.
A forma como apresentamos o nosso espectáculo é também um grande trunfo dentro do que fazemos, poder ir ao Japão, Russia, México, Estados Unidos etc etc e dar a conhecer as cosias da mesma forma como damos em Portugal demonstra que temos um show forte e isso acaba por se reflectir também no sucesso que temos tido.
Descreve-nos a energia dum concerto dos Buraka? Qual foi a cidade do mundo que mais se rendeu ao vosso espectáculo? E qual foi a cidade em que mais gostaste de actuar?
Cidade do México, Paris e Bélgica são sempre lugares onde um show de Buraka é 300%. O set do concerto é quase non-stop e tem muita coisa a acontecer, acho que é difícil ficar parado (pelo menos é como muitas pessoas o descrevem), o clash entre a bateria e o computador acaba por criar uma vibração sonora muito dinâmica e isso se reflecte na reacção das pessoas aos comandos dos mc's.
Há quem acha que o Black Diamond tem uma mensagem um pouco política. Concordas?
Acho que de um modo indirecto o disco acaba por ser reflexo dos mc's que cantaram nele e tendo um leque tão diverso e tão completo de convidados acaba por ser um pouco mais social que político. O nome parece um pouco tendencioso mas apareceu sem querer sobre a ideia da rocha que pode ser um diamante mas pelo seu aspecto rude não é valorizada por ninguém (um bocado o que acontece com o género kuduro e com outros ao redor do mundo).
Como foi feita a aproximação à MIA? O que ela achou do kuduro dos musseques luandenses, que é diferente do kuduro dos Buraka?
A MIA ligou para o estúdio porque queria ter um kuduro no disco que estava a gravar na altura (Kala) e nós começamos a trabalhar com ela mas devido a um desentendimento de timings o som acabou por não sair, aí nos adaptamos a coisa para o nosso disco e assim fizemos o "Sound of Kuduro". Ela não chegou a ir para Luanda, foi lhe recusado o visto umas 3 ou 4 vezes, no fim de contas usamos umas imagens dela no estúdio e duma viagem que ela fez pela Índia.
Qual o teu som preferido dos Buraka Som Sistema?
Há vários, eu gosto da participação do Bruno M, o "Tiroza", gosto do "Luanda/Lisboa"e o Remix que fizemos do "Make it, Take it" de Amanda Blank
Luanda-Lisboa
Como perspectivas o futuro dos Buraka?
Estamos na fase mais criativa do próximo disco da Buraka e acho que vamos entrar numa onda mais melódica do que de impacto, não gostamos de nos repetir e acho que isso vai se notar um bocado no produto final. Esperamos continuar com os shows no próximo ano e continuar a fazer as pistas tremer com a nossa música.
5 MCs que respeitas, em Angola e no estrangeiro?
Angola - Leonardo Wawuti, NGA, Mc Kapa, Phay Grande & Bruno M
Estrangeiro - Drake, Mos Def, Elzhi, Ludacris, The Game
5 artistas que ouves quase que diariamente?
Marcia, The Game, Drake, Irmãos Almeida & Matias Damásio
Album de hip-hop preferido?
The Game - Doctor's Advocate
Album preferido, excluindo o hip-hop?
Márcia – Márcia
Cidade preferida?
Tokyo
Livro preferido?
7 Minutos, de Irving Wallace
Líder mundial preferido, e porquê?
Presidente Gasolina e Príncipe Ouro Negro, porque nem tudo tem que ser político...
Pensamento do dia:
"Morrer é burrice, no caixão faz calor"
Para melhor percebemos o contexto deste som, e da importância do MCK no rap angolano e o tal amor que os três nutrem pelo hip-hop verdadeiro, orgânico, das origens, eis o que o Valete disse acerca do MC Katrogipolongopongo:
O Rap em Angola mais visível, tem uma cara muito festiva e exibicionista. É mesmo possível compararmos com o rap americano mainstream. Muitos sons para o club e muitos mc’s a celebrar uma suposta vida sumptuosa. MCK representa a face mais underground. Em Angola há também quem o classifique como um mc da escola do "Rap Revolucionário". O Mano conseguiu fazer um buzz estrondoso e hoje é conhecido e aclamado em Angola, e marca uma diferença assinalável em relação à maioria do rap Angolano mainstream. K fala da Angola real. A Angola da ditadura, a Angola dos indigentes, A Angola dos contrastes pavorosos. O Mano já chegou mesmo a ter problemas com o governo, por lhe terem associado a movimentos contra-poder. Seria muito fácil para o Kapa seguir as tendências do mainstream. Rimar "Money, cash, hoes" e provavelmente vender mais e ser até mais afamado do que já é. Mas o mano é bem maior do que isso tudo. Tem compromissos irrescindíveis. Está comprometido consigo mesmo, com a arte, e com a sua luta. Antes morrer de pé do que viver de joelhos. Eu e o Kapa, temos trabalhado juntos e temos uma parceria que de certa forma se enquadra no projecto "Um Só Caminho" e estamos a tentar abrir canais nos nossos países para mc’s da Lusofonia. O Kapa distribuiu o meu álbum em Angola, com enorme sucesso e agora vamos editar conjuntamente o Azagaia.
Rap com tanta relevância social, feito com tanto amor à camisola, só mesmo lusófono. Ou quase isso.